terça-feira, 31 de janeiro de 2017

O vazio


Corria já sem fôlego,
pulsação ofegante e abreviada,
já saturado de percorrer caminhos vazios
e de saborear apenas a vertigem do horizonte,
arqueado sobre a terra
como se fosse uma raiz frágil no deserto,
uma árvore sem fruto,
um sopro,
fundi-me na terra…

Surpreendentemente,
conheci um amigo,
um pássaro fingido (quem me dera ser),
um passageiro que repousava na árvore do vazio,
conseguia até ouvir o seu próprio silêncio,
o sabor amargo da pedra no chão,
o vazio repetido sobre as águas e sobre o tempo
como um candeeiro apagado,
posso ouvir-te, posso ser-te!

Marco Mangas

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Tropecei...


Tropecei na margem inferior
de uma página,
o semblante
de um livro sem sinopse,
uma folha distraída abraçada à terra,
alimentada pela sua astúcia,
raíz audaz e improvável.

Tropecei na margem inferior
deste corpo inerte,
excêntricismo,
uma floresta perdida talvez (numa cidade),
um corpo que busca o seu alimento,
o saciar de sua sede,
a sua razão existencial…

Tropecei na margem inferior
outra vez,
outro percurso,
outra viagem subtil,
enterrei os meus pés na terra,
fechei os olhos
e encarnei aquele quadro.

Marco Mangas

(Imagem: Tela de Claude Monet)

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Vocábulo




Nada fazia prever
o sopro do tempo,
um vocábulo perfeito,
gélido alvoroço.

Os alimentos parecem rochas,
coisas sem amor,
cor pálida, insensibilidade,
frio.

As feridas parecem fendas,
vocábulo de dor,
o arame farpado penetra na pele,
calafrio.

Marco Mangas

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Um rio lá ao fundo




Avista-se um rio lá ao fundo,
uma morada desconhecida,
os olhos desvendam algo estranho,
transparente modo,
um gesto sorridente,
pontuação singular,
exclamação…

Afinal era uma lágrima,
outra e outra lágrima,
uma vala comum de frutos caídos,
sabor amargo a meus pés,
recriação deste mundo rico,
insano!

Sustento a respiração,
soletro o imperfeito, 
o vil, o horror,
o desejo de ser nada,
o desejo de ser um rio lá ao fundo.


Marco Mangas

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Treze pétalas...


Treze pétalas apenas
para cobrir o retrato de uma flor
germinada para lá do abismo,
matéria mascarada
na solene madrugada
que interrompe o silêncio
com o seu cântico sereno e afável.

Treze pétalas apenas
me separam de ti
e das tuas sílabas oblíquas,
o fruto carnudo,
alimento dos meus olhos,
o sorriso esquecido há muito,
atrás da montanha.

Treze pétalas apenas,
o segredo do gesto,
o tacto que realiza os contornos do poema,
o paladar da tua cor,
a voz de uma lágrima (em silêncio),
sempre a noite
e o sonho de um cego.

Marco Mangas

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Esperança


Falava contigo,
tinha-te como um mar de flores,
um barco de pedra no meu porto,
um som leve e ténue,
amores e desamores,
palavras doces no crepúsculo…

Queria-te no meu lugar,
suportando o aperto no coração,
os alicerces abandonados de uma ruína
lugar inocente,
espelho do teu rosto

…e sofro!
Sofro de exaustão,
fogo ardente, relampejante,
amarras de ilusão,
vozes de levante.

Outra maré,
outra vez o teu rosto,
o meu pedaço de esperança
traído pela vazante…

Amanhã, cá estarei ao sol posto
para reavivar a esperança.

Marco Mangas

terça-feira, 3 de janeiro de 2017

O que me seduz…



Passeiam
os corpos enaltecidos pelas manhãs
e eu ali, de braços cruzados,
membros de corda sisal,
pensamentos descalços, entrelaçados,
nós e enleios sobre as clareiras vãs,
silêncio invernoso enjaulado no tal
jardim sem luz…

Teimo
em abrir as portas
que se fecham na embriaguez dos sonhos,
hesitação aveludada no meu rosto,
se não te importas,
apenas soletro o olhar da Primavera,
os seus retratos risonhos,
o que me seduz…

Marco Mangas



Hoje



Hoje
deixo o sol invadir o meu ego,
deixo-o romper e corromper
entre as brechas do meu pensamento,
recordo a sombra que deixei para trás,
os rostos que beijei,
a terra pisada.
Há uma brisa de Sul,
um novo ventre nas margens da ria,
um pássaro branco que sorria
contrastando com o céu azul,
apregoando um novo dia,
uma nova sombra…
Sou o contraste do tempo,
o rosto do passado e do futuro,
o azul e o outro azul,
o outro eu que não encontro neste clarão.

Hoje e amanhã,
serei o espelho da voz serena,
a ternura do pássaro branco,
o seio vivo do poema,
não me encontro no tempo,
outro amanhecer,
outro amanhã…

Marco Mangas